Paixão: parte um e dois
Na penúltima terça-feira de um mês
de maio frio, quando o céu já tinha se tornado marinho, após fazer suas orações
e tomar o costumeiro banho quente, Magda se enxugou, passou creme no corpo,
vestiu o pijama e mal secou seus cabelos, sentou-se em frente à antiga
escrivaninha para continuar tricotando um xale em "V" para pendurar
no quadril.
Acomodou-se na cadeira e, enquanto
selecionava no Facebook o grupo que trazia os capítulos da novela, de repente
deixou o celular cair. Colocou a mão no baixo ventre e envergou o tórax para
frente. Naquela posição, saiu da cadeira e tentou deitar-se na cama. Tentou de
lado e de frente, segurou o colchão e jogou a bacia para trás… A única coisa
que conseguiu foi gemer de dor.
Raphael, seu marido, foi até o
quarto e, aflito, perguntou o que havia. Dor, muita dor, ela respondeu.
- Vou chamar o Uber e vamos para o
hospital. - ele disse.
- Não, espera um pouco, vá dar a
sua aula.
Raphael é professor universitário e
desde a pandemia pelo covid-19, tem dado aulas pela internet, desenho técnico
para engenharia e arquitetura. Está se esforçando muito para que seus alunos
não sejam ainda mais prejudicados.
Nesse momento, ela foi para o
banheiro. Talvez seja só um flato, ela pensou. Tentou urinar, tentou de tudo
mas nada aconteceu. Somente a dor e a certeza de que algo estava errado, muito
errado.
Com calafrios, colocou-se a
respirar calmamente, curvou-se sobre as coxas e tentou relaxar. O suor escorria
por suas costas encharcando a parte de cima do pijama. Começou a sentir sua
perna direita debater-se. De fato, não era normal. Levantou-se e foi novamente
para a cama, esparramando-se de frente, mas a dor continuava e estava absurda a
ponto de deixar o gemido ser invadido por um grito.
Raphael ouviu e, apavorado, falou
para a turma:
-Pessoal, minha mulher está
passando mal. Continuaremos na próxima aula, tchau.
Magda novamente no banheiro, grita:
- Chama a ambulância, não consigo
ficar sentada - ela havia retornado ao banheiro, na posição menos
desconfortável, sentada com o tórax sobre as coxas.
Ela foi para a sala e se jogou no
sofá. Raphael joga a água que estava esquentando para fazer chá numa garrafa e
a coloca sobre o ventre da mulher que relaxa lentamente.
Os minutos pareciam intermináveis,
Magda percebe que sua roupa está toda molhada de suor, quando o marido recebe a
ligação do médico:
- Posso falar com a Magda?
- Sim. - respondeu Raphael.
- Dona Magda, aqui é o Dr. Michel.
A senhora vai receber a visita de um enfermeiro, porém, todo procedimento
deverá ser feito no hospital. Por conta da pandemia da covid-19, mudamos o
protocolo e estamos nos certificando de que a senhora não se recusará a ser
levada ao hospital.
Ela respondeu que sim, a dor era
dilacerante, mas se certificou de que todos os hospitais estavam recebendo
pacientes de covid19, o médico respondeu afirmativo, ou seja, não tinha como
escolher, desistir ou fazer de conta que a dor desaparecia, era preciso ação.
Ela concordou e desligou o
telefone. Pediu ao marido emprestar uma calça de moletom e vestiu por cima do
pijama mesmo e, também, uma blusa de manga comprida azul. Colocou sua touca de
lã, calçou os sapatos. Raphael juntou todo o resto necessário, identidade,
carteira de convênio, etc. A campainha tocou. Magda e Raphael vestiram um
casaco e suas máscaras e desceram de elevador.
Pelo vidro da porta da entrada do
prédio, a luz vermelha da ambulância não deixava dúvidas, não havia como
recuar, mesmo que fosse um maldito flato apaixonado pelo intestino grosso de
Magda, ela precisava ir para o hospital. Era a palavra dela para o Dr. Michel
sentia que era algo urgente.
O enfermeiro abriu a porta
traseira, ela entrou gemendo, deitou na maca, encontrou uma posição menos
dolorida e gemeu um pouco mais. Raphael se acomodou na poltrona em frente à
maca, colocou o cinto e partiram para o hospital.
A ambulância começou a rodar, e lá
dentro daquele veículo, não se via nada, apenas os solavancos as paradas e as perguntas:
convênio? hospital? E mesmo com dor ainda se precisava pensar, orientar e
falar.
Em dez minutos intermináveis
chegou-se ao hospital, Magda abriu os olhos, levantou-se e aceitou a ajuda para
descer da ambulância. Milagrosamente a urgência estava vazia, exceto por um
casal de idosos que olhava a movimentação assustados. Magda foi conduzida
imediatamente para a triagem, aferir pressão, verificar febre, saturação de
oxigênio e conversar com a enfermeira, lá mesmo trocou sua máscara por outra
hospitalar. Saiu da sala de cadeiras de rodas. Preencheu a ficha com as
atendentes e em seguida foi chamada pelo médico.
Na sala de atendimento falou tudo
que sentiu, as dores, o medo e a tranquilidade de já estar sendo atendida. O
médico pediu exames e receitou os analgésicos para dor. Saiu da sala e iniciou
os procedimentos com as auxiliares de enfermagem: braço estendido, garrote,
verificação da melhor veia, agulha, seringa, tubos de sangue, esparadrapo e um
chá de cadeira que durou 2 horas até ser chamada para o último exame: a
ressonância magnética com o contraste. No outro braço mais uma vez todo o
ritual de perfuração, dessa vez para injetar o iodo.
Voltou novamente para a sala de
espera e o médico, Dr Luis, chamou para falar sobre o resultado dos exames.
- A ressonância encontrou uma
apendicite aguda, esse achado significa que precisaremos fazer uma cirurgia de
urgência.
Eram 2 horas da manhã e Raphael,
que já havia voltado pra casa, foi avisado sobre, assim como a irmã, a prima e
a madrinha em Porto Alegre, tudo pelo whatsapp, enquanto Magda não ia para
enfermaria ficou esperando numa maca. Desde que chegara ao hospital estava em
jejum absoluto.
As 8 horas foi para o quarto da
enfermaria esperar o médico cirurgião. A auxiliar de enfermagem de olhos
simpáticos chegou e iniciou seu trabalho, medir, aferir e medicar.
Quando o médico chegou, confirmou a
cirurgia, Dr Pedro falou das complicações e das três hipóteses que poderiam
acontecer.
Primeiro uma cirurgia apenas por
vídeo com a inserção do vídeo, da pinça e do bisturi no abdômen através de 3
perfurações, se apêndice estiver rompido a cirurgia já complicaria e teria que
ser aberta uma fenda no abdômen e dependendo da quantidade de infecção seria
colocado uma sonda para drenar. Após essas explicações pediu a auxiliar
preparar a paciente para ir ao bloco cirúrgico.
Em cima da maca, sendo levada pelo
hospital percebeu a movimentação dos corredores, era um entra e sai de pessoas
com óculos, luvas, máscaras, toucas e aventais coloridos, cada cor revelando
alguma função. Quando chegou na sala de cirurgia injetaram a anestesia e
trocaram a máscara de pano pela de oxigênio. Magda apagou.
Acordou em outra sala e com muita
sede. Retornou ao quarto e Raphael estava a esperando, o médico já havia
passado por lá e comunicado que a cirurgia do apêndice tinha sido tranquila,
houveram outros achados clínicos, porém isso já seria tratado com outro médico
de outra especialidade.
No pós-operatório é necessário
descanso e paciência. Enfim, o apêndice de 9 centímetros que causara tanta dor
e medo havia sido retirado sem maiores consequências e em torno de 24 horas
Magda retornara a sua casa, sem o Alien, ops, o apêndice. Estava grata pelo
atendimento, pelo companheirismo do marido e principalmente pela vida. Nunca
pensou em viver algo assim, uma pandemia, uma guerra contra um inimigo
invisível que impossibilita o ir e vir nas ruas e por esse motivo o medo em ir
para o hospital, mas a dor apareceu do nada e a urgência em enfrentar o vírus
onde ele mais se concentra e é combatido foi inevitável. Enfim, coragem é que
nos faz vivos e isso não lhe faltou.
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